Rua Lins

Meu avô se chamava André, mas todos o conheciam como Lins. Meu vô Lins.
Por uma coincidência -ou não-, moro na rua que leva seu nome, o real, não o apelido.

jueves, 29 de octubre de 2009

Meu avô - Do diário de 23 de agosto de 08

Meu avô se chamava Salvador. Hoje acordei pensando nele.
Me lembro pouquinho dele. Às vezes me ponho em dúvida se os detalhes que recordo são minha memória verdadeira ou uma memória construida a partir das fotos que sempre vi somadas a uma ou outra história que ouvi.
Me lembro que ele tinha cabelinho ralo. Nunca foi careca, mas dava para ver o couro cabeludo. Me lembro de suas camisas meio finas e de uns chinelos de couro, desses de senhor. Acho que ele tinha pernas finas.
Me lembro dele ativo, num quartinho cheio de mistérios, meio sombrio e lotado de cacarecos. Tinha pregos de todos os tamanhos. Era proibido mexer ali.
Me lembro também da lavanderia que tinha um funil enorme.
Me lembro da bíblia e da seriedade do meu vô Salva. Eu achava que ele era bravo, assim como achei meu pai bravo muito tempo. Hoje apenas acho que meu avô era introspectivo, ensimesmado, mais ocupado dos mistérios ocultos que das frivolidades do dia-a-dia.
Contam que ele tinha um radinho que sintonizava rádios estrangeiras e que ele se atinha naquelas notícias de longe, entendendo e tentando entender. Contam também que ele dizia que inventariam um telefone que seria possível carregar para qualquer lugar.
Rio hoje de um dia que ele ficou furioso. Meu pai estava construindo um escritório ao lado da casa dele e tinham acabado de instalar o telefone. Então eu e um primo tivemos a brilhante idéia de ir ao escritório e telefonar para meu avô, na casa do lado. Ele virou uma fera. Eu e meu primo nos enfiamos no banheiro com medo porém rindo até morrer. Meu primo levou umas palmadas.
Ele era um comedor de frutas. Descascava laranjas como quem reza, perfeito e solene. Me ensinou o poder dos ímãs a partir de uma banana. Após as refeições recolhia as migalhas de pão com uma banana, que ia comendo e limpando a mesa. Faço isso às vezes.
Meu avô ficou viúvo. Eu era criança mas me lembro de seu beijo de despedida na minha avó. Apesar de eu ter passado o velório todo brincando de pega-pega na rampa do edifício, de esconde-esconde em mil buracos e me entupindo de algodão doce, lembro-me que ele disse a ela “um dia nos encontraremos”. Meu avô levava tudo tão a risca que não quis deixá-la esperando.
Sempre dizia que não dormia mas apenas fechava os olhos para descansar. No dia em que dormiu mesmo, a alma se foi. Minha mãe atendeu o telefone e senti um silêncio, acho que eu soube pela cara da minha mãe.
Não me lembro da voz do meu avô. Nem do jeito que ele falava. Das visitas a meu avô ficaram os agradáveis domingos de feira com o sol quente, as frutas, alguns cultos religiosos na TV, o olhar, a fé e minha lembrança de sua fragilidade dos últimos tempos, sentado em um banco na entrada do escritório do meu pai. Faz mais de 20 anos.

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