São Paulo (ou chegar em SP ou voltar de lá) é sempre um aprendizado. À primeira vista, a cidade pode parecer muito inóspita para nós que quase sempre só vemos as marginais. Porém, existe ali a solidariedade. Acho que solidariedade é o sentimento de compaixão pela solidão do outro. Mesmo que compaixão às vezes carregada de paciência.
Tomei o ônibus de 5 e meia. Eu estava com uma de minhas roupas favoritas: um vestido cinza-velho-que-parece-novo, cachecol laranja, meia cinza-claro, sapato marrom. O ônibus parou no terminal São Paulo pegar passageiros.
Pensei que conhecesse o sotaque de Recife, mas era um sotaque da Bahia. Sentou-se do meu lado, com o corredor entre nós (recomendo a poltrona 6 e 8 que são as melhores do Cometa, mais altas que as da frente, o que possibilita ampla visão e espaço de sobra para as pernas. Assim, estávamos eu e seu Manoel em posição de privilégio).
Luzes apagadas e um dedo enfiou na carninha do meu braço: “Me desculpa, mas você é evangelica?”...“Não” ... “Eu pergunto por causa da sua roupa”... “Me visto assim porque gosto” (senti que fui rude só depois que dei a resposta... não me lembrei do aprendido com o Eduardo, de pensar e depois falar). “Ah, você faz muito bem em se vestir assim, muito bem”.
Todo mundo que toma ônibus essa hora da manhã dorme. Todos menos o seu Manoel. Descobri o nome dele de forma indireta, pois ele, em algum momento falou: “meu cunhado me disse: ‘Manoel, ela é teimosa’ “. Confesso que de tudo que foi dito, perdi uns quarenta por cento para o sotaque. Ele começou falando alto, como as pessoas de uns 60-70 anos costumam falar. Mas foi serenando, serenando, até que pareceu que minha atenção servia para ele contar as coisas a si mesmo.
Ele me contou que era evangélico, por isso era um homem bom e que o resto da família, todos eram da congregação cristã. Na religião dele ensinaram a nunca entrar na casa de uma mulher sozinha, jamais! Se ele fosse me visitar e meu pai não estivesse ele não teria permissão de entrar.
Ficou viúvo há oito dias... “Te digo que estou sofrendo. Está sendo muito doído. A falecida me faz falta, não durmo mais no meu quarto. Não posso mais dormir no meu quarto, é como se ela estivesse lá, sabe? Então ponho um colchãozinho na sala. Durmo na sala. Não posso dormir no quarto, não posso. Foram 27 anos. Faz oito dias que eu durmo na sala... Vou sempre ver meus irmãos e eles me dizem que ela está num lugar muito melhor.”
“Seus irmãos moram em São Paulo?”
“Não, digo meus irmãos da igreja. Meus irmãos mesmo estão lá na Bahia.”
Só sei que a falecida era teimosa. Teve uma pneumonia e não quis ir ao médico, piorou e nem sei do que morreu. Seu Manoel falou muito mas captei pouco. Silenciou. Em nenhum momento me incomodei com a conversa e nem com o fato de dar um pouco de atenção a ele. Ele estava sofrendo a solidão.
Novamente o dedinho nas minhas carninhas: “Não posso fechar os olhos que vejo o cemitério, ela na cova, de véu assim na testa (mostrou num gesto)”.
“Então trate de não pensar nela na cova” . Falei isso mais alto para garantir que ele escutaria. “Pense em todos os momentos de alegria que compartilharam”.
“Eu sei, eu sei, tenho juízo. Saio de casa e vou converar com os colegas. Vou voltar estudar. Fui esta semana conversar com a professora e ver como faço. Vou para a quarta série”.
Dei-lhe apoio à nova etapa e ele disse que tem consciencia que a vida dele não acabou e aliás tem muitas alegrias nesta vida. Lá na igreja subiu no palco para dar seu testemunho, agradecer a Deus que a filha passou na OAB. Silêncio.
Eu estava quase cochilando quando o dedo me chamou: “você gosta de proteína?”. E lá se foi a longa explicação seguida de um recorte de jornal sobre o poder dos grãos e o “bem que faz” comer sementes de abóbora. Silêncio.
A última apalpada em meu braço foi: “você sabe de onde vem as línguas?”... Adaptei a minha resposta ao que ele queria ouvir: “da Torre de Babel”. Ele arrancou a biblia da bolsa e abriu na parte que esclarece esse dilema e me entregou. Ele estava sendo tão generoso que eu também quis oferecer algo a ele. Abri minha pasta de aula e retirei uma cópia de “A cidade das árvores”, um lindo conto infanto-juvenil, sobre uma cidade que é tomada pela natureza. Entramos na Barra Funda, devolvi a biblia agradecendo e dizendo que já conhecia aquela passagem. Ele estava muito satisfeito com o fato de eu conhecer porque muita gente desconhece. Ele gostou de eu ter lhe dado o conto. Fomos embora em paz.
No caminho de volta, eu na poltrona 8, um senhor atrás de mim, mais idoso que o da manhã, porém com a mesma solidão. E eu com a mesma solidariedade, ainda que exercitando muitíssimo a paciência: “ Toda vez que eu viajava pela estrada de ouro fino...”.... “Ah! Chalana sem querer, Tu aumentas minha dor, Nessas águas tão serenas, Vai levando meu amor”... Cantou e assobiou tristeza todo o caminho. Desceu no terminal São Paulo, com sua velha esposa (surda, coitada, repeti três vezes que era ali mesmo o terminal...acho que a serenata foi para ela, pena que quem ouviu fui eu).
Tomei o ônibus de 5 e meia. Eu estava com uma de minhas roupas favoritas: um vestido cinza-velho-que-parece-novo, cachecol laranja, meia cinza-claro, sapato marrom. O ônibus parou no terminal São Paulo pegar passageiros.
Pensei que conhecesse o sotaque de Recife, mas era um sotaque da Bahia. Sentou-se do meu lado, com o corredor entre nós (recomendo a poltrona 6 e 8 que são as melhores do Cometa, mais altas que as da frente, o que possibilita ampla visão e espaço de sobra para as pernas. Assim, estávamos eu e seu Manoel em posição de privilégio).
Luzes apagadas e um dedo enfiou na carninha do meu braço: “Me desculpa, mas você é evangelica?”...“Não” ... “Eu pergunto por causa da sua roupa”... “Me visto assim porque gosto” (senti que fui rude só depois que dei a resposta... não me lembrei do aprendido com o Eduardo, de pensar e depois falar). “Ah, você faz muito bem em se vestir assim, muito bem”.
Todo mundo que toma ônibus essa hora da manhã dorme. Todos menos o seu Manoel. Descobri o nome dele de forma indireta, pois ele, em algum momento falou: “meu cunhado me disse: ‘Manoel, ela é teimosa’ “. Confesso que de tudo que foi dito, perdi uns quarenta por cento para o sotaque. Ele começou falando alto, como as pessoas de uns 60-70 anos costumam falar. Mas foi serenando, serenando, até que pareceu que minha atenção servia para ele contar as coisas a si mesmo.
Ele me contou que era evangélico, por isso era um homem bom e que o resto da família, todos eram da congregação cristã. Na religião dele ensinaram a nunca entrar na casa de uma mulher sozinha, jamais! Se ele fosse me visitar e meu pai não estivesse ele não teria permissão de entrar.
Ficou viúvo há oito dias... “Te digo que estou sofrendo. Está sendo muito doído. A falecida me faz falta, não durmo mais no meu quarto. Não posso mais dormir no meu quarto, é como se ela estivesse lá, sabe? Então ponho um colchãozinho na sala. Durmo na sala. Não posso dormir no quarto, não posso. Foram 27 anos. Faz oito dias que eu durmo na sala... Vou sempre ver meus irmãos e eles me dizem que ela está num lugar muito melhor.”
“Seus irmãos moram em São Paulo?”
“Não, digo meus irmãos da igreja. Meus irmãos mesmo estão lá na Bahia.”
Só sei que a falecida era teimosa. Teve uma pneumonia e não quis ir ao médico, piorou e nem sei do que morreu. Seu Manoel falou muito mas captei pouco. Silenciou. Em nenhum momento me incomodei com a conversa e nem com o fato de dar um pouco de atenção a ele. Ele estava sofrendo a solidão.
Novamente o dedinho nas minhas carninhas: “Não posso fechar os olhos que vejo o cemitério, ela na cova, de véu assim na testa (mostrou num gesto)”.
“Então trate de não pensar nela na cova” . Falei isso mais alto para garantir que ele escutaria. “Pense em todos os momentos de alegria que compartilharam”.
“Eu sei, eu sei, tenho juízo. Saio de casa e vou converar com os colegas. Vou voltar estudar. Fui esta semana conversar com a professora e ver como faço. Vou para a quarta série”.
Dei-lhe apoio à nova etapa e ele disse que tem consciencia que a vida dele não acabou e aliás tem muitas alegrias nesta vida. Lá na igreja subiu no palco para dar seu testemunho, agradecer a Deus que a filha passou na OAB. Silêncio.
Eu estava quase cochilando quando o dedo me chamou: “você gosta de proteína?”. E lá se foi a longa explicação seguida de um recorte de jornal sobre o poder dos grãos e o “bem que faz” comer sementes de abóbora. Silêncio.
A última apalpada em meu braço foi: “você sabe de onde vem as línguas?”... Adaptei a minha resposta ao que ele queria ouvir: “da Torre de Babel”. Ele arrancou a biblia da bolsa e abriu na parte que esclarece esse dilema e me entregou. Ele estava sendo tão generoso que eu também quis oferecer algo a ele. Abri minha pasta de aula e retirei uma cópia de “A cidade das árvores”, um lindo conto infanto-juvenil, sobre uma cidade que é tomada pela natureza. Entramos na Barra Funda, devolvi a biblia agradecendo e dizendo que já conhecia aquela passagem. Ele estava muito satisfeito com o fato de eu conhecer porque muita gente desconhece. Ele gostou de eu ter lhe dado o conto. Fomos embora em paz.
No caminho de volta, eu na poltrona 8, um senhor atrás de mim, mais idoso que o da manhã, porém com a mesma solidão. E eu com a mesma solidariedade, ainda que exercitando muitíssimo a paciência: “ Toda vez que eu viajava pela estrada de ouro fino...”.... “Ah! Chalana sem querer, Tu aumentas minha dor, Nessas águas tão serenas, Vai levando meu amor”... Cantou e assobiou tristeza todo o caminho. Desceu no terminal São Paulo, com sua velha esposa (surda, coitada, repeti três vezes que era ali mesmo o terminal...acho que a serenata foi para ela, pena que quem ouviu fui eu).
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