Rua Lins

Meu avô se chamava André, mas todos o conheciam como Lins. Meu vô Lins.
Por uma coincidência -ou não-, moro na rua que leva seu nome, o real, não o apelido.

sábado, 8 de mayo de 2010

Diário de 05 de outubro de 2008

Dia primeiro foi aniversário da minha madrinha. Ontem e hoje irmã e tia. Em uma semana eu, minha prima, outra prima e mais uma galera. Fim do mês meu tio e uma amiga. Outubro é uma fertilidade.

Creio que inspirada pelos ares de outubro minha mãe pegou meu primo ontem para um papo-cabeça sobre métodos anticoncepcionais. Disse a ele: “dê um nó no pinto”... “porque olhe a carinha da Adriana, eu estava usando camisinha quando engravidei dela”.

Meu primo, entre uma e outra mordida na pizza, ria, não sei se por achar engraçado ou por constrangimento. Ele tem 25 anos.

Durante a minha adolescência fui descobrindo as coisas meio sozinhas. Lia capricho, comprava escondido. Li Confissões de adolescente, que comprei escondido também. Engraçado que não ousei pedir para meus pais o livro. Minha mãe achou no meu guarda-roupa e disse que alguém tinha dito que o livro era péssimo. Foi uma tempestade. Nesta mesma época vieram as propagandas de Tampax na televisão, que pregava a liberdade de movimentos. Eu queria nadar com liberdade, qualquer dia do mês. Pois comprei o absorvente e quando veio a tona foi mais uma tempestade.

Para mim, ainda hoje, virgindade é mais um estado de espírito que um detalhe fisiológico. Pode ser que quando eu seja mãe minha opinião mude. Ou talvez não.

A falta de informação deixa as meninas tontas. Digo meninas porque os meninos já esticam e puxam desde que tiram as fraldas. Quando eu tinha 15 anos fui numa festa de aniversário e numa rodinha de meninas eu perguntei o que acontecia com o “saco” na hora H... onde exatamente ele ficava. Pois passei a ser mais chacotada do que sempre fui. A subversiva Capricho não tinha me esclarecido detalhes tão profundos... a revista subversiva não foi além de discutir quando devemos dar o primeiro beijo e o dilema de dividir com a melhor amiga a mesma paixão. Início da década de 90... hoje deve estar mais interessante.

O fato é que nunca consegui conversar com minha mãe sadiamente sobre o assunto. A fúria pairava sobre a conversa: sexo é proibido. Mas fui sacando os pontos chaves da sobrevivência sexual: “Sabe quem está GRAAAAAAAAvida?”... “Coitada da mãe dela”. Então o grave era estar grávida. Mas um ponto ficou de fora: doenças sexualmente transmissíveis.

Tenho uma amiga com filha adolescente que mal a menina começou a namorar ela sentou a filha no sofá e chamou o pai. Começou a mostrar fotos de órgãos sexuais doentes. Falou de HIV e de toda espécie de perigo. Por último acrescentou a inviabilidade da gravidez na adolescência. Papo fácil? Penosíssimo. Mas tem a hora certa de acontecer e deve acontecer. A teoria do “nó no pinto” é ilustrativa, mas pobre em informação. Falar mais ou menos e entenda-se como queira também não adianta. Estou convicta que diferenciar meninos e meninas também não adianta... a menos que queiramos que os filhos só tenham experiências com profissionais.

Hoje posso dizer que compreendo muito minha mãe e a dificuldade que ela encontrou no momento de me explicar o que eu precisava saber. Sei que do lado dela ela sofreu, observando-me crescer e fez como pôde. Eu do meu lado sofri, descobrindo como pude.

Diário de 29 de junho de 2008

Tenho pensado muito sobre amar ao próximo como a mim mesma. E tenho exercitado amar e também a tentativa de amar, mesmo quando é difícil.

Amo muito alguns de meus alunos e tento amar outros tantos. Sempre gostei do jeito criança de amar, espontâneo e declarado. Engraçado que estou começando a entender o jeito adolescente de amar, às vezes calado e às vezes irado. Acho que eles têm tudo contra quem eles amam mais. Sei que alguns esperam ansiosos por minhas aulas, porque outras pessoas me contam. Às vezes no intervalo vão fuçar na sala de professores para ver se eu estou. Outros, mal dá o sinal já acham que eu estou atrasada e vão pendurados em mim até a sala de aula.

Tenho um aluno que amo. Se chama Lucas e está na 6ª série. Pequeno e ainda com alma de criança.

Nas primeiras experiências em uma sala de aula, tudo é uma maçaroca de cabeças, corpos e vozes, sem identidade. Poucos despontam no primeiro dia. O Lucas demorou umas duas semanas, para eu identificá-lo de longe. Demorou uns 2 meses para nossa relação afetiva e de construção de fato começar.

A aula, como sempre, semi-caótica: uns fazendo e outros tentando achar o lápis, tentando achar o caderno, tentando emprestar do vizinho, reclamando, jogando io-io... e o Lucas, como de praxe, caminhando. Corpo miúdo, boné na cabeça e sorriso fácil.

“Lucas, pegue uma cadeira e venha sentar-se aqui comigo que tenho uma coisa importante para conversar”.

Uma ou outra voz: “Ô loco, Lucas, fudeu”. Sorrizinhos, olhos atentos, mãos paradas. Quem estava em pé se sentou. Os alunos costumam não escutar direito quando temos algo importante a dizer a eles, mas adoram algo importante que temos a dizer a outro aluno, ainda mais quando sentem que a batata vai assar.

Lucas parou a sua constante caminhada a umas 5 carteiras de distância e falou: “Vou fazer, dona, estava só emprestando uma folha”.

“Ótimo que você vai fazer, mas venha aqui antes”

“Ichi, dona”. Segurou o boné e coçou a cabeça, sorriu um pouco. “Tenho que ir?”

“Lucas, larga mão de ser medroso que eu nunca mordi ninguém, só xingo.” Disse, também sorrindo.

Veio ele com a cadeira e sentou pertinho, sorrindo sempre. A classe sorrindo sempre também...e expectante.

“Fale, dona”

“Lucas, você é honesto?”

“Claro, né”.

“Então tá. Você se lembra daquele dia, há umas três semanas que fomos na sala de vídeo ver a projeção das cores primárias? Ótimo! Quando voltamos aqui e todos foram embora a bolsa da Tábata tinha sumido.”

“E eu que sei?”

“Pois é, então eu me lembrei que vi você com esse cabeção enfiado pela janela e tive a brilhante idéia de enfiar meu cabeção também. E sabe o que eu vi? A bolsa da Tábata pendurada pra fora.”

Sorriso na cara: “Não fui eu”.

“Lucas, você disse que é honesto”.

Ele olhou para o público: “Ói, a dona não acredita em mim”.

A classe sorrindo sempre, até a Tábata.

“Acredito sim... sempre que tenho que acreditar. Quero apenas que você diga a verdade. Não vou ficar brava, tenho coração mole. Confesse”

Sorriso: “Tá bom dona, fui eu”.

A classe em gargalhadas, eu rindo satisfeita e Lucas rindo também satisfeito.”

“Tábata, você perdoa o Lucas por isso?”

“Perdôo, dona”.

“Lucas, mostre-nos como fez para que ninguém percebesse”.

Lá foi ele fazer o teatro, de corpo leve e cara dissimulada, tim tim por tim tim.

Nessa hora a gente vê a cumplicidade. O criminoso assume a culpa e os cumplices vão aparecendo, um a um.

“Eu vi ele fazer, dona”.

“Eu vi também... Mas não sou X9” (descobri que X9 é dedo-duro).

“Está perdoado, Lucas”. Dei-lhe um beijo na bochecha.”Seja honesto sempre”.

Desse primeiro contato de construção, passei a percebê-lo em cada aula e ele ansioso pela minha aula. Cada um amando a seu modo... Até que um dia tinham uns três meninos atormentando, nem me lembro fazendo o quê. Eu disse que mais uma vez, fosse quem fosse, iria para fora.

O Lucas que nem estava no meio da primeira confusão se meteu com o Leonardo (foi nesse dia que iniciei minha construção com o Leonardo).

“Leonardo, pode sair”. O Lucas foi andando de fininho para a carteira dele. “Lucas, você também pode sair.”

“Mas, dona, vou fazer o desenho, eu juro.” Eu sabia que naquele momento ele estava sendo sincero, mas não pude ceder. “Lucas, você e os outros foram avisados, pode sair, estou esperando.”

Leonardo já estava na porta pronto para sair e o Lucas ainda esperava meu perdão, sentado em seu lugar. Sustentei meu olhar, séria e com meu coração partido. Acho que é isso que uma mãe sente quando tem que sustentar uma decisão. Ai que dor senti, e ele também.

Foram os dois falar com a Marineide, levei-os pessoalmente. Cinco minutos depois estavam os dois, cada um na sua carteira. Leonardo sorridente, falante e fazendo. O Lucas não conseguia me olhar, estava magoado comigo... e eu cheia de ternura e vontade de abraçá-lo, mas sem poder.

Chamei todos para ver o desenho. Veio o Lucas, com olhos tristes.

“Eu gosto de você, viu? Mesmo você sendo um cabra da peste”, disse a ele.

Os olhos dele mudaram. Não falou nada e nem deu o braço a torcer, mas se sentiu feliz. Na aula seguinte ele estava radiante, sorridente e sabendo que tudo tem seu limite. Ele e o Leonardo (que era novo na escola) se tornaram inseparáveis e passaram a freqüentar minhas aulas extra-curriculares, me ajudam quando preciso e me perseguem para cima e para baixo.

Diário de 09 de setembro de 2009

Mulher que não trabalha fora vai ficando cada dia mais marruda e sem assunto... só resolve coisa chata. Trabalha feito condenada se de fato for deixar tudo como manda o figurino, mas não causa impacto. Em ninguém.

Desde que me casei, lavei no máximo 30% das louças sujas desta casa. Desde o princípio Eduardo disse que apreciava a tarefa, eu disse que odiava e ficou assim. Dos afazeres do lar, lavo e passo roupas, planejo e faço a comida. Eduardo lava as louças e pica a cebola sempre que está presente nesse momento choroso. E o resto? O resto a gente ia sapecando aqui e ali, conforme dava, até que arranjamos uma especialista que comparece semanalmente e dá conta de tudo.

Estou em “licença suína” desde que veio o surto da gripe (pois estou grávida e afastada), assim que virei dona de casa (impagável essa expressão.... Também as mulheres que trabalham fora chegam esbaforidas com uma sacola de compras embaixo do braço, acendendo um microondas aqui, apertando um botão da máquina ali e tentando dar conta do mínimo para a sobrevivência familiar). Desde então os papéis estão marcados: Edu trabalha fora e eu trabalho dentro. E nessa descobri que ele era uma máquina incansável de lavar louças. Não suporto mais olhar pra pia... e, se eu realmente quiser, posso passar o dia limpando que existe sim o que limpar e arrumar.

Só sei que quando ele chega em casa e sentamos pra jantar, fica naquela... eu, que sempre fui a falante não tenho o que falar e ele não tem o que escutar. O pior é eu mesma me achar um saco, porque quando abro a boca é pra falar de assuntos domésticos.