Tenho pensado muito sobre amar ao próximo como a mim mesma. E tenho exercitado amar e também a tentativa de amar, mesmo quando é difícil.
Amo muito alguns de meus alunos e tento amar outros tantos. Sempre gostei do jeito criança de amar, espontâneo e declarado. Engraçado que estou começando a entender o jeito adolescente de amar, às vezes calado e às vezes irado. Acho que eles têm tudo contra quem eles amam mais. Sei que alguns esperam ansiosos por minhas aulas, porque outras pessoas me contam. Às vezes no intervalo vão fuçar na sala de professores para ver se eu estou. Outros, mal dá o sinal já acham que eu estou atrasada e vão pendurados em mim até a sala de aula.
Tenho um aluno que amo. Se chama Lucas e está na 6ª série. Pequeno e ainda com alma de criança.
Nas primeiras experiências em uma sala de aula, tudo é uma maçaroca de cabeças, corpos e vozes, sem identidade. Poucos despontam no primeiro dia. O Lucas demorou umas duas semanas, para eu identificá-lo de longe. Demorou uns 2 meses para nossa relação afetiva e de construção de fato começar.
A aula, como sempre, semi-caótica: uns fazendo e outros tentando achar o lápis, tentando achar o caderno, tentando emprestar do vizinho, reclamando, jogando io-io... e o Lucas, como de praxe, caminhando. Corpo miúdo, boné na cabeça e sorriso fácil.
“Lucas, pegue uma cadeira e venha sentar-se aqui comigo que tenho uma coisa importante para conversar”.
Uma ou outra voz: “Ô loco, Lucas, fudeu”. Sorrizinhos, olhos atentos, mãos paradas. Quem estava em pé se sentou. Os alunos costumam não escutar direito quando temos algo importante a dizer a eles, mas adoram algo importante que temos a dizer a outro aluno, ainda mais quando sentem que a batata vai assar.
Lucas parou a sua constante caminhada a umas 5 carteiras de distância e falou: “Vou fazer, dona, estava só emprestando uma folha”.
“Ótimo que você vai fazer, mas venha aqui antes”
“Ichi, dona”. Segurou o boné e coçou a cabeça, sorriu um pouco. “Tenho que ir?”
“Lucas, larga mão de ser medroso que eu nunca mordi ninguém, só xingo.” Disse, também sorrindo.
Veio ele com a cadeira e sentou pertinho, sorrindo sempre. A classe sorrindo sempre também...e expectante.
“Fale, dona”
“Lucas, você é honesto?”
“Claro, né”.
“Então tá. Você se lembra daquele dia, há umas três semanas que fomos na sala de vídeo ver a projeção das cores primárias? Ótimo! Quando voltamos aqui e todos foram embora a bolsa da Tábata tinha sumido.”
“E eu que sei?”
“Pois é, então eu me lembrei que vi você com esse cabeção enfiado pela janela e tive a brilhante idéia de enfiar meu cabeção também. E sabe o que eu vi? A bolsa da Tábata pendurada pra fora.”
Sorriso na cara: “Não fui eu”.
“Lucas, você disse que é honesto”.
Ele olhou para o público: “Ói, a dona não acredita em mim”.
A classe sorrindo sempre, até a Tábata.
“Acredito sim... sempre que tenho que acreditar. Quero apenas que você diga a verdade. Não vou ficar brava, tenho coração mole. Confesse”
Sorriso: “Tá bom dona, fui eu”.
A classe em gargalhadas, eu rindo satisfeita e Lucas rindo também satisfeito.”
“Tábata, você perdoa o Lucas por isso?”
“Perdôo, dona”.
“Lucas, mostre-nos como fez para que ninguém percebesse”.
Lá foi ele fazer o teatro, de corpo leve e cara dissimulada, tim tim por tim tim.
Nessa hora a gente vê a cumplicidade. O criminoso assume a culpa e os cumplices vão aparecendo, um a um.
“Eu vi ele fazer, dona”.
“Eu vi também... Mas não sou X9” (descobri que X9 é dedo-duro).
“Está perdoado, Lucas”. Dei-lhe um beijo na bochecha.”Seja honesto sempre”.
Desse primeiro contato de construção, passei a percebê-lo em cada aula e ele ansioso pela minha aula. Cada um amando a seu modo... Até que um dia tinham uns três meninos atormentando, nem me lembro fazendo o quê. Eu disse que mais uma vez, fosse quem fosse, iria para fora.
O Lucas que nem estava no meio da primeira confusão se meteu com o Leonardo (foi nesse dia que iniciei minha construção com o Leonardo).
“Leonardo, pode sair”. O Lucas foi andando de fininho para a carteira dele. “Lucas, você também pode sair.”
“Mas, dona, vou fazer o desenho, eu juro.” Eu sabia que naquele momento ele estava sendo sincero, mas não pude ceder. “Lucas, você e os outros foram avisados, pode sair, estou esperando.”
Leonardo já estava na porta pronto para sair e o Lucas ainda esperava meu perdão, sentado em seu lugar. Sustentei meu olhar, séria e com meu coração partido. Acho que é isso que uma mãe sente quando tem que sustentar uma decisão. Ai que dor senti, e ele também.
Foram os dois falar com a Marineide, levei-os pessoalmente. Cinco minutos depois estavam os dois, cada um na sua carteira. Leonardo sorridente, falante e fazendo. O Lucas não conseguia me olhar, estava magoado comigo... e eu cheia de ternura e vontade de abraçá-lo, mas sem poder.
Chamei todos para ver o desenho. Veio o Lucas, com olhos tristes.
“Eu gosto de você, viu? Mesmo você sendo um cabra da peste”, disse a ele.
Os olhos dele mudaram. Não falou nada e nem deu o braço a torcer, mas se sentiu feliz. Na aula seguinte ele estava radiante, sorridente e sabendo que tudo tem seu limite. Ele e o Leonardo (que era novo na escola) se tornaram inseparáveis e passaram a freqüentar minhas aulas extra-curriculares, me ajudam quando preciso e me perseguem para cima e para baixo.