Rua Lins

Meu avô se chamava André, mas todos o conheciam como Lins. Meu vô Lins.
Por uma coincidência -ou não-, moro na rua que leva seu nome, o real, não o apelido.

lunes, 31 de diciembre de 2012

Arrumando gavetas


E este ano de 2012 chega ao fim, ano que desvesti algumas roupagens e que redescobri em mim algumas camadas que estavam veladas. Para o querido 2013 que chega poderia fazer uma lista de afazeres, de promessas, de perspectivas. Não... Apenas o desejo de ser mãe paciente com minha Maricota a cada refeição que ela faz manha, a cada objeto que ela empurra de maneira desavergonhada para que caia no chão, a cada instrução que tenho que dar pela enésima vez. Desejo a sabedoria necessária para orientá-la pelo caminho do equilíbrio, para que seja tão feliz quanto possa ser. Cultivo para o tempo que chega o desejo de ser uma pessoa melhor, mais honesta, sobretudo comigo mesma. Cultivo para o ano que chega o desejo do sorriso franco, do coração aberto, das mãos dadas.
Para estes dias de transição e espera pelo ano novo, arrumei meu guarda-roupas. O primeiro de muitos armários que serão abertos nos próximos dias. Tenho essa necessidade nestas épocas: descobrir o que está guardado, limpar, selecionar, arrumar, reclassificar. Arrumo e penso. Encontro fotos, um pé de meia perdido, um objeto querido, uma carta. Abro as portas de meus armários como quem perscruta as gavetas interiores [da alma].
O ano que já se vai foi importante, não pelos últimos doze meses, mas com um período mais amplo, em que redesenhei rotas. Engraçado falar de rotas, mas é assim que percebo as linhas, os liames entrecruzarem-se sob meus pés. A percepção de um ciclo que se iniciou meses antes de 2012, a muitos pés de altura, rumando para Rio Branco no Acre. Lá do alto emocionei-me com a beleza e com a sensação de liberdade. Percebi que o Mato Grosso é uma grande superfície harmonicamente marchetada e que os rios que cortam a Amazônia parecem sim serpentes abraçando esse pedaço de terra que também é Brasil. A tantos pés de altura e tão longe de casa, fiquei mais perto de mim e tive tempo de pensar (às vezes, em nossas vidas de quase máquinas, não nos é permitido este tempo). Acho que 2012 foi o ano de desejar ser menos máquina. E para 2013, como li numa oração num dia destes, quero “suspender o automatismo da ação”, quero viver-sentir.
E para cada pessoa que conheço ou desconheço, desejo para o ano que se aproxima que toda engrenagem que vai dentro seja coração. Que nada seja arrastado, mas vivido. Que roupagens velhas possam ser mudadas, que trajetos possam ser redesenhados, que armários possam ser arrumados, que gavetas interiores sejam vasculhadas. Desejo a cada um, de todo meu coração, a paz.

domingo, 19 de agosto de 2012

Pequena declaração de amor

Na insônia, numa noite que passou, estava pensando na amizade. Talvez o tema tenha me saltado ao pensamento por ter lido há alguns dias, solta numa folha de papel, uma frase escrita três vezes: ‘O correio de amigos é doçura’; e tenha sido convidada a refletir sobre ela, pra só então, depois, saber tratar-se de um poema de Drummond.
 Eu, que sou dada às sensibilidades e sentimentalismos, tento ponderar aqui e ali, a fim de não afugentar outras sensibilidades com meus excessos. Mesmo assim revelo alguns eu-te-amos, quando sinto que é isto mesmo e que não poderia me conter...
Não tenho amigas de infância, mas algumas que valeriam por estas. Há algumas que passo meses, quase ano sem ver, e quando do encontro fica aquele ar de ‘parece que nos falamos ontem mesmo’.  É um punhado pequeno, mas que poderiam ser descritas de muitas maneiras... Muitas descrições pra uma, uma descrição pra muitas.
Aquela com quem passo da meia noite falando, tomando uma xícara de chá... Aquela que tem um caso de amor com as palavras... Aquela que cozinha como uma fada... Aquela que mora longe e surge como um cometa... Aquela que gosta de tirar o sapato aqui na sala... Aquela que poderia ser minha mãe... Aquela que guarda ‘um nosso segredinho’... Aquela que parece um anjo de um afresco italiano... Aquela que usa camisas de lese hipnotizantes... Aquela que divide comigo o gosto por gravuras... Aquela que me diz a palavra exata... Aquela que perdoa minha ausência... Aquela que gosta de plantas.... Aquela que está apaixonada... Aquela que, tal qual Virgílio, me situa nestes caminhos estranhos... Aquela que divide comigo as ternuras-agruras da maternidade... Aquela que divide comigo as reflexões sobre espiritualidade... Aquela que me ensina, sempre... Aquela que reencontrei depois de um desvio... Aquela que conhece todas as minhas fraquezas... Aquela que nasceu pra ser mãe... Aquela que respeita meus mergulhos em mim...
Não sei quantas ou quais cores eu adiciono à vida de cada uma delas. Apenas sei, incontestavelmente, que cada faz da minha vida maior... e toda vez que nelas penso, é Doçura.

sábado, 8 de mayo de 2010

Diário de 05 de outubro de 2008

Dia primeiro foi aniversário da minha madrinha. Ontem e hoje irmã e tia. Em uma semana eu, minha prima, outra prima e mais uma galera. Fim do mês meu tio e uma amiga. Outubro é uma fertilidade.

Creio que inspirada pelos ares de outubro minha mãe pegou meu primo ontem para um papo-cabeça sobre métodos anticoncepcionais. Disse a ele: “dê um nó no pinto”... “porque olhe a carinha da Adriana, eu estava usando camisinha quando engravidei dela”.

Meu primo, entre uma e outra mordida na pizza, ria, não sei se por achar engraçado ou por constrangimento. Ele tem 25 anos.

Durante a minha adolescência fui descobrindo as coisas meio sozinhas. Lia capricho, comprava escondido. Li Confissões de adolescente, que comprei escondido também. Engraçado que não ousei pedir para meus pais o livro. Minha mãe achou no meu guarda-roupa e disse que alguém tinha dito que o livro era péssimo. Foi uma tempestade. Nesta mesma época vieram as propagandas de Tampax na televisão, que pregava a liberdade de movimentos. Eu queria nadar com liberdade, qualquer dia do mês. Pois comprei o absorvente e quando veio a tona foi mais uma tempestade.

Para mim, ainda hoje, virgindade é mais um estado de espírito que um detalhe fisiológico. Pode ser que quando eu seja mãe minha opinião mude. Ou talvez não.

A falta de informação deixa as meninas tontas. Digo meninas porque os meninos já esticam e puxam desde que tiram as fraldas. Quando eu tinha 15 anos fui numa festa de aniversário e numa rodinha de meninas eu perguntei o que acontecia com o “saco” na hora H... onde exatamente ele ficava. Pois passei a ser mais chacotada do que sempre fui. A subversiva Capricho não tinha me esclarecido detalhes tão profundos... a revista subversiva não foi além de discutir quando devemos dar o primeiro beijo e o dilema de dividir com a melhor amiga a mesma paixão. Início da década de 90... hoje deve estar mais interessante.

O fato é que nunca consegui conversar com minha mãe sadiamente sobre o assunto. A fúria pairava sobre a conversa: sexo é proibido. Mas fui sacando os pontos chaves da sobrevivência sexual: “Sabe quem está GRAAAAAAAAvida?”... “Coitada da mãe dela”. Então o grave era estar grávida. Mas um ponto ficou de fora: doenças sexualmente transmissíveis.

Tenho uma amiga com filha adolescente que mal a menina começou a namorar ela sentou a filha no sofá e chamou o pai. Começou a mostrar fotos de órgãos sexuais doentes. Falou de HIV e de toda espécie de perigo. Por último acrescentou a inviabilidade da gravidez na adolescência. Papo fácil? Penosíssimo. Mas tem a hora certa de acontecer e deve acontecer. A teoria do “nó no pinto” é ilustrativa, mas pobre em informação. Falar mais ou menos e entenda-se como queira também não adianta. Estou convicta que diferenciar meninos e meninas também não adianta... a menos que queiramos que os filhos só tenham experiências com profissionais.

Hoje posso dizer que compreendo muito minha mãe e a dificuldade que ela encontrou no momento de me explicar o que eu precisava saber. Sei que do lado dela ela sofreu, observando-me crescer e fez como pôde. Eu do meu lado sofri, descobrindo como pude.

Diário de 29 de junho de 2008

Tenho pensado muito sobre amar ao próximo como a mim mesma. E tenho exercitado amar e também a tentativa de amar, mesmo quando é difícil.

Amo muito alguns de meus alunos e tento amar outros tantos. Sempre gostei do jeito criança de amar, espontâneo e declarado. Engraçado que estou começando a entender o jeito adolescente de amar, às vezes calado e às vezes irado. Acho que eles têm tudo contra quem eles amam mais. Sei que alguns esperam ansiosos por minhas aulas, porque outras pessoas me contam. Às vezes no intervalo vão fuçar na sala de professores para ver se eu estou. Outros, mal dá o sinal já acham que eu estou atrasada e vão pendurados em mim até a sala de aula.

Tenho um aluno que amo. Se chama Lucas e está na 6ª série. Pequeno e ainda com alma de criança.

Nas primeiras experiências em uma sala de aula, tudo é uma maçaroca de cabeças, corpos e vozes, sem identidade. Poucos despontam no primeiro dia. O Lucas demorou umas duas semanas, para eu identificá-lo de longe. Demorou uns 2 meses para nossa relação afetiva e de construção de fato começar.

A aula, como sempre, semi-caótica: uns fazendo e outros tentando achar o lápis, tentando achar o caderno, tentando emprestar do vizinho, reclamando, jogando io-io... e o Lucas, como de praxe, caminhando. Corpo miúdo, boné na cabeça e sorriso fácil.

“Lucas, pegue uma cadeira e venha sentar-se aqui comigo que tenho uma coisa importante para conversar”.

Uma ou outra voz: “Ô loco, Lucas, fudeu”. Sorrizinhos, olhos atentos, mãos paradas. Quem estava em pé se sentou. Os alunos costumam não escutar direito quando temos algo importante a dizer a eles, mas adoram algo importante que temos a dizer a outro aluno, ainda mais quando sentem que a batata vai assar.

Lucas parou a sua constante caminhada a umas 5 carteiras de distância e falou: “Vou fazer, dona, estava só emprestando uma folha”.

“Ótimo que você vai fazer, mas venha aqui antes”

“Ichi, dona”. Segurou o boné e coçou a cabeça, sorriu um pouco. “Tenho que ir?”

“Lucas, larga mão de ser medroso que eu nunca mordi ninguém, só xingo.” Disse, também sorrindo.

Veio ele com a cadeira e sentou pertinho, sorrindo sempre. A classe sorrindo sempre também...e expectante.

“Fale, dona”

“Lucas, você é honesto?”

“Claro, né”.

“Então tá. Você se lembra daquele dia, há umas três semanas que fomos na sala de vídeo ver a projeção das cores primárias? Ótimo! Quando voltamos aqui e todos foram embora a bolsa da Tábata tinha sumido.”

“E eu que sei?”

“Pois é, então eu me lembrei que vi você com esse cabeção enfiado pela janela e tive a brilhante idéia de enfiar meu cabeção também. E sabe o que eu vi? A bolsa da Tábata pendurada pra fora.”

Sorriso na cara: “Não fui eu”.

“Lucas, você disse que é honesto”.

Ele olhou para o público: “Ói, a dona não acredita em mim”.

A classe sorrindo sempre, até a Tábata.

“Acredito sim... sempre que tenho que acreditar. Quero apenas que você diga a verdade. Não vou ficar brava, tenho coração mole. Confesse”

Sorriso: “Tá bom dona, fui eu”.

A classe em gargalhadas, eu rindo satisfeita e Lucas rindo também satisfeito.”

“Tábata, você perdoa o Lucas por isso?”

“Perdôo, dona”.

“Lucas, mostre-nos como fez para que ninguém percebesse”.

Lá foi ele fazer o teatro, de corpo leve e cara dissimulada, tim tim por tim tim.

Nessa hora a gente vê a cumplicidade. O criminoso assume a culpa e os cumplices vão aparecendo, um a um.

“Eu vi ele fazer, dona”.

“Eu vi também... Mas não sou X9” (descobri que X9 é dedo-duro).

“Está perdoado, Lucas”. Dei-lhe um beijo na bochecha.”Seja honesto sempre”.

Desse primeiro contato de construção, passei a percebê-lo em cada aula e ele ansioso pela minha aula. Cada um amando a seu modo... Até que um dia tinham uns três meninos atormentando, nem me lembro fazendo o quê. Eu disse que mais uma vez, fosse quem fosse, iria para fora.

O Lucas que nem estava no meio da primeira confusão se meteu com o Leonardo (foi nesse dia que iniciei minha construção com o Leonardo).

“Leonardo, pode sair”. O Lucas foi andando de fininho para a carteira dele. “Lucas, você também pode sair.”

“Mas, dona, vou fazer o desenho, eu juro.” Eu sabia que naquele momento ele estava sendo sincero, mas não pude ceder. “Lucas, você e os outros foram avisados, pode sair, estou esperando.”

Leonardo já estava na porta pronto para sair e o Lucas ainda esperava meu perdão, sentado em seu lugar. Sustentei meu olhar, séria e com meu coração partido. Acho que é isso que uma mãe sente quando tem que sustentar uma decisão. Ai que dor senti, e ele também.

Foram os dois falar com a Marineide, levei-os pessoalmente. Cinco minutos depois estavam os dois, cada um na sua carteira. Leonardo sorridente, falante e fazendo. O Lucas não conseguia me olhar, estava magoado comigo... e eu cheia de ternura e vontade de abraçá-lo, mas sem poder.

Chamei todos para ver o desenho. Veio o Lucas, com olhos tristes.

“Eu gosto de você, viu? Mesmo você sendo um cabra da peste”, disse a ele.

Os olhos dele mudaram. Não falou nada e nem deu o braço a torcer, mas se sentiu feliz. Na aula seguinte ele estava radiante, sorridente e sabendo que tudo tem seu limite. Ele e o Leonardo (que era novo na escola) se tornaram inseparáveis e passaram a freqüentar minhas aulas extra-curriculares, me ajudam quando preciso e me perseguem para cima e para baixo.

Diário de 09 de setembro de 2009

Mulher que não trabalha fora vai ficando cada dia mais marruda e sem assunto... só resolve coisa chata. Trabalha feito condenada se de fato for deixar tudo como manda o figurino, mas não causa impacto. Em ninguém.

Desde que me casei, lavei no máximo 30% das louças sujas desta casa. Desde o princípio Eduardo disse que apreciava a tarefa, eu disse que odiava e ficou assim. Dos afazeres do lar, lavo e passo roupas, planejo e faço a comida. Eduardo lava as louças e pica a cebola sempre que está presente nesse momento choroso. E o resto? O resto a gente ia sapecando aqui e ali, conforme dava, até que arranjamos uma especialista que comparece semanalmente e dá conta de tudo.

Estou em “licença suína” desde que veio o surto da gripe (pois estou grávida e afastada), assim que virei dona de casa (impagável essa expressão.... Também as mulheres que trabalham fora chegam esbaforidas com uma sacola de compras embaixo do braço, acendendo um microondas aqui, apertando um botão da máquina ali e tentando dar conta do mínimo para a sobrevivência familiar). Desde então os papéis estão marcados: Edu trabalha fora e eu trabalho dentro. E nessa descobri que ele era uma máquina incansável de lavar louças. Não suporto mais olhar pra pia... e, se eu realmente quiser, posso passar o dia limpando que existe sim o que limpar e arrumar.

Só sei que quando ele chega em casa e sentamos pra jantar, fica naquela... eu, que sempre fui a falante não tenho o que falar e ele não tem o que escutar. O pior é eu mesma me achar um saco, porque quando abro a boca é pra falar de assuntos domésticos.

sábado, 16 de enero de 2010

Diário de 15 de junho de 2008

Despir-nos de preconceitos (e digo no plural) é dolorido. Estou progredindo, um a um.

Numa sociedade em que o certo e o errado são gravados a fogo em nossas carnes, aceitar o próximo -e verbalizar a aceitação- é ser quase-mártir. Porque muitas vezes até não nos importamos com certas coisas mas fazemos de conta que sim, se estamos próximos àqueles que nos inspiram castidade ou que nos mostram rigidamente as facetas de seu preconeito. Temos medo de ser diferentes, quando de fato não somos iguais.
Enfrento-me diariamente com o exercício de ser diferente. Numa escola há sempre a patotinha que é contra o boné, o chicletes, a comer na sala de aula. Para mim, antes um aluno sem fome me escutando que um que não tira os olhos do relógio enquanto a barriga ronca. Acho que esses professores brigam com o chicletes e balas porque não queram falar a cada cinco minutos que devem jogar os papéis no lixo. Educar dá muito trabalho.
O boné é uma polêmica. Trabalhei em uma escola em que a vice-diretora abria minha porta e brigava com meus alunos pelo boné. Eu não queria cometer o mesmo erro de desautorizá-la diante dos alunos, então me calava... Até que descobri uma maneira não agressiva de pedir para tirarem o boné: "Meninos, a escola me põe regras que devo cumprir e uma delas é que eu diga para que vocês tirem o boné. Por mim vocês poderiam vir até com chapéu de mágico... ou pelados". Eles tiravam o boné rindo. Os que se resistiam a tirar eu nem me importava, seguiam ali, refugiados na segurança que o boné lhes proporcionava.
O boné diz muito para os meninos. Assim como as meninas usam tiara ou carregam suas bolsas cheia de badulaques. Faz parte daquela identidade. Prezo mais o respeito e a participação em aula do que o fato de ter ou não uma tira de pano na cabeça.
Escolhi estudar num lugar que me possibilitou crescer muito, um lugar de liberdades e de aprendizagem do não-preconceito. Um dia na AP-06, sala de pintura, fora do horário de aulas, um companheiro me perguntou se podia arrancar o short e a sunga molhados de piscina e por uma cueca... e que queria pintar de cueca. Ele pintando numa parede da sala e eu na parede oposta. Estavamos de costas um para o outro. Não vi nada. Só vi ele de cueca pintando contente e "nem aí" com minha presença. Pensei que melhor de cueca que pelado.
Toda essa história me surgiu porque lendo um jornal espanhol me deparo com nossas brasileiras da Daspu. Um jornal estrangeiro colocou o desfile em sua fotogaleria (http://www.20minutos.es/galeria/4809/0/0/ ). Fui buscar na Folha de São Paulo e no Estadão, se haviam notícias recentes e qual a valorização da moda de nossas putas. Na Folha nada, no Estadão apenas palavras (http://www.estadao.com.br/arteelazer/not_art188905,0.htm ), nem uma imagem, como se alguém pudesse ficar chocado.
O que mais gosto nesse jornal espanhol, de cunho até sensacionalista, é a democracia e liberdade de expressão. Sobre nossas putas haviam dois comentários interessantes para uma foto de uma das "modelo", com sua coragem e celulites à mostra:
"Una mujer normal!! caramba!!"
"Normal!!! Es mujer, trabajadora y natural."
Há em cada foto do jornal espanhol, críticas ou apoio. Mais apoio que críticas. No jornal brasileiro a notícia está camuflada entre tantas outras .. e zero comentários, ainda que o jornal possibilite fazê-lo.
Não sei o que acontece que nos sentimos no direito de julgar. Todos temos algo de que nos envergonhar. Não somos idênticos, porém, muito mais iguais do que acreditamos ser.

jueves, 29 de octubre de 2009

Meu avô - Do diário de 23 de agosto de 08

Meu avô se chamava Salvador. Hoje acordei pensando nele.
Me lembro pouquinho dele. Às vezes me ponho em dúvida se os detalhes que recordo são minha memória verdadeira ou uma memória construida a partir das fotos que sempre vi somadas a uma ou outra história que ouvi.
Me lembro que ele tinha cabelinho ralo. Nunca foi careca, mas dava para ver o couro cabeludo. Me lembro de suas camisas meio finas e de uns chinelos de couro, desses de senhor. Acho que ele tinha pernas finas.
Me lembro dele ativo, num quartinho cheio de mistérios, meio sombrio e lotado de cacarecos. Tinha pregos de todos os tamanhos. Era proibido mexer ali.
Me lembro também da lavanderia que tinha um funil enorme.
Me lembro da bíblia e da seriedade do meu vô Salva. Eu achava que ele era bravo, assim como achei meu pai bravo muito tempo. Hoje apenas acho que meu avô era introspectivo, ensimesmado, mais ocupado dos mistérios ocultos que das frivolidades do dia-a-dia.
Contam que ele tinha um radinho que sintonizava rádios estrangeiras e que ele se atinha naquelas notícias de longe, entendendo e tentando entender. Contam também que ele dizia que inventariam um telefone que seria possível carregar para qualquer lugar.
Rio hoje de um dia que ele ficou furioso. Meu pai estava construindo um escritório ao lado da casa dele e tinham acabado de instalar o telefone. Então eu e um primo tivemos a brilhante idéia de ir ao escritório e telefonar para meu avô, na casa do lado. Ele virou uma fera. Eu e meu primo nos enfiamos no banheiro com medo porém rindo até morrer. Meu primo levou umas palmadas.
Ele era um comedor de frutas. Descascava laranjas como quem reza, perfeito e solene. Me ensinou o poder dos ímãs a partir de uma banana. Após as refeições recolhia as migalhas de pão com uma banana, que ia comendo e limpando a mesa. Faço isso às vezes.
Meu avô ficou viúvo. Eu era criança mas me lembro de seu beijo de despedida na minha avó. Apesar de eu ter passado o velório todo brincando de pega-pega na rampa do edifício, de esconde-esconde em mil buracos e me entupindo de algodão doce, lembro-me que ele disse a ela “um dia nos encontraremos”. Meu avô levava tudo tão a risca que não quis deixá-la esperando.
Sempre dizia que não dormia mas apenas fechava os olhos para descansar. No dia em que dormiu mesmo, a alma se foi. Minha mãe atendeu o telefone e senti um silêncio, acho que eu soube pela cara da minha mãe.
Não me lembro da voz do meu avô. Nem do jeito que ele falava. Das visitas a meu avô ficaram os agradáveis domingos de feira com o sol quente, as frutas, alguns cultos religiosos na TV, o olhar, a fé e minha lembrança de sua fragilidade dos últimos tempos, sentado em um banco na entrada do escritório do meu pai. Faz mais de 20 anos.

domingo, 11 de octubre de 2009

Diário de classe

Outro dia numa reunião pedagógica na escola o ponto em questão era (como quase sempre) a avaliação. Falava do modo –ou modos- de fazer a correção: o que considerar, o que descontar, como pontuar. Muito claro ... sempre e quando se trata de assuntos objetivos. Vimos alguns exemplos de quatro ou cinco disciplinas e quando chegou à matemática (sempre ela) o tempo estendeu-se, já que o assunto dá sempre pano pra manga e sempre recebe observações, daqui e dali. Curioso que existem muitas divergências entre os envolvidos diretamente: um diz que o que importa é como o aluno desenvolveu o raciocínio ainda que tenha errado a resposta por uma operação incorreta enquanto outro diz que se a resposta final está incorreta então tudo é incorreto e ponto...
Já em arte tudo é sinuoso. E perigoso. Avaliar é pisar em ovos. Existe resposta correta?
No dia-a-dia na sala de aula, tem algo que valoro muito: o empenho na superação de dificuldades. E quanto a isso sempre encontro alunos bons. Às vezes encontro alunos fantásticos.
Semana passada eu estava trabalhando com uma dúzia de alunos de sétimas e oitavas e todos estavam envolvidos com monotipia. A monotipia consiste em colocar tinta sobre uma superfície (sendo que essa tinta e essa superfície podem variar muitíssimo) e então com um papel ou tecido exercemos alguma pressão sobre essa tinta, a modo de carimbo. Nós trabalhávamos tinta guache sobre uma superfície de vidro e papel cartolina cortado em pedaços.
Incrível as descobertas que vão fazendo, por exemplo que a imagem do vidro e papel são contrárias. Em geral demoram para essa conclusão, que se dá quase sempre porque escrevem algo e as letras aparecem espelhadas no papel. Quase sempre esse trabalho é rápido e cheio de entusiasmo pelas formas que muitas vezes surgem ao acaso.
Entre placas cheias de cor e excessos de tinta, um aluno puxou seu papel e vejo com assombro a beleza da forma, da textura e da cor: uma rosa. Fundo preto numa superfície delicada (feita com rolinho de espuma), a folhagem rebelde e cheia de espinhos em verde escuro e as pétalas num vermelho vibrante, molhado, imponente, ocupando 2/3 do papel.
“Rafa, que rosa linda! Ficou fantástica.”
“Não deu certo, professora. Eu fiz um macaco numa árvore.”
“Bom, basta você dizer que era uma rosa que todos vão se admirar”, disse sorrindo. As meninas chegaram mais perto para ver, aprovando a rosa. “Tenta de novo, Rafa, põe menos tinta para ela não dançar quando puser o papel... e pense que você já descobriu como fazer uma rosa”.
Ele fez mais duas ou três tentativas frustradas e disse resoluto: “Já sei, agora vai dar certo”. Não me fixei no que ele estava fazendo, a sala estava um rebuliço de idéias e cores. Passou-se algum tempo.
“Professora, consegui!” Ele tinha um grande sorriso. Olhei e vi: fundo preto e macaco vermelho. Outros alunos viram e sorriram.
“Deu certo, Rafa. Como você fez?”
“Primeiro fiz o fundo e imprimi no papel. Depois que secou fiz o macaco no vidro e imprimi de novo. Agora falta a árvore”.
A árvore se sobrepôs um pouco ao macaco. “Professora, eu deveria ter feito a árvore antes do macaco. Vou fazer de novo.” E fez.
Me senti admirada com o empenho dele. Ele pensou, experimentou e superou a dificuldade. Segmentou o trabalho para atingir o objetivo.
Ele se sentiu entusiasmado e eu também. Me disse: “Sabe, professora, eu tenho um monte de idéias mas não faço em casa porque vai fazer uma lameira. Posso fazer aqui?”.
Ele passou o restante da aula experimentando. Diluiu tintas, usou pincel, vidro, canudinhos, rolinhos, palitos de sorvete. Descobriu.

sábado, 14 de marzo de 2009

De 08 de junho de 2008

São Paulo (ou chegar em SP ou voltar de lá) é sempre um aprendizado. À primeira vista, a cidade pode parecer muito inóspita para nós que quase sempre só vemos as marginais. Porém, existe ali a solidariedade. Acho que solidariedade é o sentimento de compaixão pela solidão do outro. Mesmo que compaixão às vezes carregada de paciência.
Tomei o ônibus de 5 e meia. Eu estava com uma de minhas roupas favoritas: um vestido cinza-velho-que-parece-novo, cachecol laranja, meia cinza-claro, sapato marrom. O ônibus parou no terminal São Paulo pegar passageiros.
Pensei que conhecesse o sotaque de Recife, mas era um sotaque da Bahia. Sentou-se do meu lado, com o corredor entre nós (recomendo a poltrona 6 e 8 que são as melhores do Cometa, mais altas que as da frente, o que possibilita ampla visão e espaço de sobra para as pernas. Assim, estávamos eu e seu Manoel em posição de privilégio).
Luzes apagadas e um dedo enfiou na carninha do meu braço: “Me desculpa, mas você é evangelica?”...“Não” ... “Eu pergunto por causa da sua roupa”... “Me visto assim porque gosto” (senti que fui rude só depois que dei a resposta... não me lembrei do aprendido com o Eduardo, de pensar e depois falar). “Ah, você faz muito bem em se vestir assim, muito bem”.
Todo mundo que toma ônibus essa hora da manhã dorme. Todos menos o seu Manoel. Descobri o nome dele de forma indireta, pois ele, em algum momento falou: “meu cunhado me disse: ‘Manoel, ela é teimosa’ “. Confesso que de tudo que foi dito, perdi uns quarenta por cento para o sotaque. Ele começou falando alto, como as pessoas de uns 60-70 anos costumam falar. Mas foi serenando, serenando, até que pareceu que minha atenção servia para ele contar as coisas a si mesmo.
Ele me contou que era evangélico, por isso era um homem bom e que o resto da família, todos eram da congregação cristã. Na religião dele ensinaram a nunca entrar na casa de uma mulher sozinha, jamais! Se ele fosse me visitar e meu pai não estivesse ele não teria permissão de entrar.
Ficou viúvo há oito dias... “Te digo que estou sofrendo. Está sendo muito doído. A falecida me faz falta, não durmo mais no meu quarto. Não posso mais dormir no meu quarto, é como se ela estivesse lá, sabe? Então ponho um colchãozinho na sala. Durmo na sala. Não posso dormir no quarto, não posso. Foram 27 anos. Faz oito dias que eu durmo na sala... Vou sempre ver meus irmãos e eles me dizem que ela está num lugar muito melhor.”
“Seus irmãos moram em São Paulo?”
“Não, digo meus irmãos da igreja. Meus irmãos mesmo estão lá na Bahia.”
Só sei que a falecida era teimosa. Teve uma pneumonia e não quis ir ao médico, piorou e nem sei do que morreu. Seu Manoel falou muito mas captei pouco. Silenciou. Em nenhum momento me incomodei com a conversa e nem com o fato de dar um pouco de atenção a ele. Ele estava sofrendo a solidão.
Novamente o dedinho nas minhas carninhas: “Não posso fechar os olhos que vejo o cemitério, ela na cova, de véu assim na testa (mostrou num gesto)”.
“Então trate de não pensar nela na cova” . Falei isso mais alto para garantir que ele escutaria. “Pense em todos os momentos de alegria que compartilharam”.
“Eu sei, eu sei, tenho juízo. Saio de casa e vou converar com os colegas. Vou voltar estudar. Fui esta semana conversar com a professora e ver como faço. Vou para a quarta série”.
Dei-lhe apoio à nova etapa e ele disse que tem consciencia que a vida dele não acabou e aliás tem muitas alegrias nesta vida. Lá na igreja subiu no palco para dar seu testemunho, agradecer a Deus que a filha passou na OAB. Silêncio.
Eu estava quase cochilando quando o dedo me chamou: “você gosta de proteína?”. E lá se foi a longa explicação seguida de um recorte de jornal sobre o poder dos grãos e o “bem que faz” comer sementes de abóbora. Silêncio.
A última apalpada em meu braço foi: “você sabe de onde vem as línguas?”... Adaptei a minha resposta ao que ele queria ouvir: “da Torre de Babel”. Ele arrancou a biblia da bolsa e abriu na parte que esclarece esse dilema e me entregou. Ele estava sendo tão generoso que eu também quis oferecer algo a ele. Abri minha pasta de aula e retirei uma cópia de “A cidade das árvores”, um lindo conto infanto-juvenil, sobre uma cidade que é tomada pela natureza. Entramos na Barra Funda, devolvi a biblia agradecendo e dizendo que já conhecia aquela passagem. Ele estava muito satisfeito com o fato de eu conhecer porque muita gente desconhece. Ele gostou de eu ter lhe dado o conto. Fomos embora em paz.
No caminho de volta, eu na poltrona 8, um senhor atrás de mim, mais idoso que o da manhã, porém com a mesma solidão. E eu com a mesma solidariedade, ainda que exercitando muitíssimo a paciência: “ Toda vez que eu viajava pela estrada de ouro fino...”.... “Ah! Chalana sem querer, Tu aumentas minha dor, Nessas águas tão serenas, Vai levando meu amor”... Cantou e assobiou tristeza todo o caminho. Desceu no terminal São Paulo, com sua velha esposa (surda, coitada, repeti três vezes que era ali mesmo o terminal...acho que a serenata foi para ela, pena que quem ouviu fui eu).

lunes, 9 de marzo de 2009

De 24 de maio de 2008

Este sábado adiantei a festa junina e dancei quadrilha. Só faltou a chuva, prova de que nem tudo estava perdido.
Acordei as 5 da manhã. Na noite anterior já tinha comprado minha passagem do Cometa pela internet (diga-se de passagem que o sistema funciona e é eficiente). Fui pra rodoviária para rumar a avenida Paulista, Instituto Cervantes, para fazer a prova do DELE. Tudo seguia o planejado.
Um pouco antes das 7 da manhã o buzão pára na Castelo. O motorista levanta, ajeita a calça com a calma de quem já sabia e diz: “teve um acidente as 4 da manhã... 30 veículos”. Arregalei os olhos e perguntei: “pela sua experiência, a que horas chegaremos na Barra Funda?”... “às 10h, pelo menos”.
Me deu uma fome imediata. Catei o saquinho de doritos e comecei a comer.... 7 da manhã. Chupei os dedos pensando nas possibilidades. Liguei pro Instituto Cervantes, a voz eletrônica me disse que só depois das 8h. Esperei. Li. Sorri para o tio do lado, manchado pelo vitiligo.
Liguei pro Cervantes e expliquei a situação. Nada feito, perderia a prova, os 200 reais por ela, fora as horinhas de sono já perdidas com o pezinho no Du...
A estrada que estava bloqueada nos dois sentidos, foi liberada no sentido interior. Resolvi atravessá-la e tomar o primeiro buzão de volta. Desci do ônibus e perguntei pro motorista o preço de volta, e como encontraria de novo nosso ônibus caso minha empreitada falhasse. “Tá vendo aquele número ali em cima, 1252? É o nosso.” Desejei boa viagem a ele e parti.
Atravessei a grama do centro do canteiro (é enorme, não parece quando dirigimos) e cheguei a estrada. Olhando os carros passando pensei na minha aula de trânsito da pré-escola, numa visita à ADPM. O “Tio Mixirica”, um guarda, mostrava os slides de como atravessar a rua na faixa de pedestre. O exemplo de quem atravessou fora da faixa mostrava a didática foto de uma longa lingüiça, dessas de churrasco. Tive medo de virar lingüiça e comecei a caminhar pela borda da estrada. É super inclidada essa borda, dói os tornozelos.
Voltei a atravessar o gramado, para o outro lado da estrada, onde havia gente, engarrafamento e sol, porque o frio estava de arrebentar. Tinha de tudo ali, gente fazendo amizade para passar o tempo, música alta, fumantes. Me olhavam com assombro ao me ver passar, eu buscava a primeira pasarela para o outro lado. Uns jovens me perguntaram se eu tinha um Red Bull.
Andei uns 4 Km me sentindo a mulher mais gostosa da face da terra. Na falta de coisa melhor para preencher o tempo, ao passar olhavam minha bunda. Por curiosidade ou fetiche.
A passagem de carros foi liberada e todo mundo correu para seus veículos. O 1252 estava muito longe. Vi outro Cometa prestes a acelerar e bati na porta, expliquei minha desventura ao motorista e pedi carona até a passarela mais próxima.
No Castelinho da Pamonha comecei a subir as escadas da passarela. Cheguei ao último degrau e avancei três passos. No chão algo brilhante me chamou a atenção. Olhei incrédula: uma cobra. “Essa coisa está viva?”. Recuei três passos. Pensei. Olhei pra baixo e vi que a estrada ali era dividida por um muro de cimento. Sem chances. Olhei pra cobra: 30 cm, preta, brilhante, fina, linda. Fazia alguns SS com seu corpinho. Me olhava de frente. Ponderei e dei um salto. Caí longe dela, ela se mexeu e parecia ter mais medo que eu.
Descendo a passarela encontrei dois homens subindo, alertei sobre a cobra. “VIVAAA?” me perguntou um deles. Fiquei olhando lá de baixo, mataram a coitada.
Muita gente usa a passarela, moças, crianças, homens, motos.
Ali no ponto de ônibus tive outro desafio: não passar-me por prostituta. Eu estava numa “ilha”, estrada de um lado, ruinha do outro, um bar ali atrás. Muitos caminhões buzinaram. Alguns buzinaram e tiraram o pé do acelerador para ver a “resposta” que eu poderia dar. Outros entravam devagarzinho na ruinha atrás da ilha e eu impassível. Resolviam voltar pra estrada acelerando firme. Passaram três Cometas lotados e escoaram-se uns 80 minutos. Encostou um carro grande cheio de gente e sobrando um lugar. O motorista me disse “Sorocaba? 12 reais”. Subi. A mulher da frente contava para o motorista que uma vez por semana visitava a casa de Deus e que ele também deveria visitar. Como a vida dela tinha melhorado, como de uma portinha de sucos agora tinha uma lanchonete de verdade. Ao descer ela disse ao motorista: “Se converta e fique com Deus”. Uma mulher que sorria ao falar de Deus.
A conversa da mulher me fez relaxar. Senti que meus braços cruzados numa pose anti-prostituta tinham absorvido minhas energias. Tudo doía e mais intensamente os braços (doeram até de noite). Almocei e dormi o sono dos justos, com pijama e sonhos. Me sentia absolutamente feliz.
No fim, podia ter sido pior, podia ter chovido. Pensei isso no ponto de ônibus e fui compondo meu diário. Me lembrei das quadrilhas, com seus casais coloridos recuando no “Olha a cobra”, “a ponte caiu”... “olha a chuva”.
Menina de sorte.